terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Ao teu ouvido






"Fica comigo este dia e esta noite e possuirás/
a alegria de todos os poemas,"


Walt Whitman




Lembras-te de Lost in Translation? O que disse Bill Murray ao ouvido de Scarlett Johansson? Durante anos andei fascinada com este mistério. Que combinação de palavras permitiu a ambos seguir em frente, daquela maneira tocada pela graça? Hoje acho que sei. Talvez se pareça vagamente com o que eu disse ao teu ouvido, na mais definitiva das nossas tardes.
Tive a presciência do nosso encontro três meses antes dele acontecer. Depois de anos de pesadelos, soube que estava livre nas primeiras noites em que voltei a dormir com tranquilidade. Enterrara os meus mortos. Adornara-lhes as sepulturas, em louvor do que tinham representado num tempo distante de mim. Mas houve uma noite em que tomei consciência, clara e inequívoca, dessa transformação ténue, que avançava mansa mas resolutamente. Num sonho bom, com aparência de realidade. Um sonho de liberdade pela primeira vez em tanto tempo, em que era conduzida para o desconhecido por alguém que também não conhecia, sem que, por qualquer razão, isso fosse uma ameaça. Uma viagem em terra incógnita que, depois, na lógica surreal dos sonhos, se transformou em voo, vertigem e, finalmente, em aterragem perfeita.
Quando te vi chegar ao nosso primeiro encontro profissional no velho carocha azul, estremeci de prazer: reconhecera o carro em que voara no sonho. Sorri ante a delicadeza do acaso, mas não o tomei por um prenúncio. Era apenas uma forma do mundo se mostrar capaz de alguma graciosidade.

- Belo carro - comentei quando te aproximaste.

- Acha? Antes era velho, agora é vintage.


Esta ligeireza deu o mote ao encontro, que foi tranquilo, mas, reconheço-o agora, especial. Soltámos amarras e partimos sem destino nem relógio. Já instalados na proximidade do tu, perguntei: "És um poseur?" Respondeste, humilde, quase melancólico, os olhos nos meus olhos: "Achas?" Achar, talvez achasse, mas estava totalmente disponível para estilhaçar velhas certezas. Momentos houve em que suspeitavas, vulnerável, que aquela conversa estava a correr mal, mas eu soube sempre que corria muito bem, porque já nessa altura preferia a fragilidade das pessoas reais a discursos ferreamente controlados.
Poucas vezes me senti tão confortável com um desconhecido. Fisicamente confortável, diga-se. Nem vacilei quando, por instantes, pousaste a mão na minha perna. Habitualmente tão reactiva ao toque, tão guardada na minha concha, deixei-me estar como se a tua mão fosse de água. Foi o primeiro de muitos encontros - almoços, jantares, um rio de palavras e, sim, o flirt é um álcool doce e sumptuoso como uma taça de champanhe. Depois, os sinais de ansiedade traem o enamoramento nascente. Um gesto mais e surge a evidência do desejo. Do que, para nós, mandavam todas as conveniências, não devia acontecer.
Em breve, quase toda a minha felicidade parecia concentrar-se em algumas horas, duas noites na semana, passadas em restaurantes discretos, ruas esquecidas, mensagens codificadas. Antes que a minha felicidade toda estivesse nessa vida furtiva contigo, voltei-lhe as costas com decisão. Falei-te ao ouvido e parti. Nas manhãs que se seguiram, nadava vigorosamente como se dessa forma lavasse a falta física da tua presença. Também deixei de fumar, inscrevi-me numa comunidade de leitores e arranjei um sem número de objectivos subitamente urgentes à espera que o tempo preenchesse aquele vazio. No princípio, tão carnal como a fome.
Agora o breve acorde musical indicando a chegada de um SMS já não me causa o sobressalto risonho dessa época. Porque, com toda a probabilidade, não virá de ti. "A thing of beauty is a joy forever", disse-te ao ouvido, na mais definitiva das nossas tardes, citando Keats para que percebesses que falava muito a sério. Sabes que estarei lá. No conforto que sentes no coração, todas as noites, um minuto antes de adormeceres.

A última literatura

No dia em que, por irreflexão minha, perdi o mais belo dos SMS de amor que alguma vez recebi senti ganas de destruir o telemóvel. Não o fiz (embora tenha aproveitado a intenção para propósito ficcional) mas invejei verdadeiramente esses namoros de outrora que guardavam em maços enlaçados amor, ciúme, esperança, desejo, arrebatamento. Não era Soror Mariana quem queria, mas mesmo o mais singelo apaixonado tinha, nas gavetas, esses pedaços de prosa a que o catalão Joan Margarit chamou a «última literatura». Num poema belíssimo («Non tires las cartas de amor») o poeta escreve: «Caerán los años. Te cansarán los libros./Descenderás aún más/ e, incluso, perderás la poesia./El ruído de ciudad en los cristales/acabará por ser tu única música,/y las cartas de amor que habrás guardado/serán tu última literatura.»
Margarit, nascido em 1938, escrevia para os seus contemporâneos que, na melhor das hipóteses, dispunham de um telefone para encurtar distâncias entre amantes. Os menos imaginativos chegavam mesmo a comprar um dos numerosos manuais de correspondência amorosa disponíveis nas livrarias. Iam ao marco do correio, cheios de esperança de um dia cantarolar como Sérgio Godinho: «E ela disse que sim.»
Mas e-mails e SMS substituíram, com óbvias vantagens prática, a antiga arte da epistolografia. Já não é preciso ir aos correios, gastar dinheiro em papel de carta, selo, horas de angústia na espera da resposta, outras tantas de introspecção para encontrar expressão adequada ao amor que nos tomava. E, no entanto, muito se perdeu nessa substituição tecnológica que poderá significar toda uma transformação civilizacional. Muito dificilmente alguém guardará mails de amor com o empenho posto na conservação de cartas dentro dos respectivos sobrescritos. O que, na ideia de Margarit, deixará as gerações futuras ainda mais sós. Faltar-lhe-ás, nos piores anos, a sua última literatura.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A flor do amaranto

Encontraste-me sentada na varanda, a dormitar sobre um livro de poemas de Yeats. Fui buscá-lo à estante quando disseste que vinhas porque, ao longo dos anos, esperei que o teu amor soubesse adaptar-se à crua verdade de estar mudada pelo tempo. Perdi a insolência de quem se move num corpo desejável, ganhei a doçura de quem tem numa sedosa cabeleira branca o derradeiro orgulho. Agora vou ter a prova real: amar-me-ás quando eu for velha e me restar só, como dizia o poeta irlandês sobre a sua amada, a minha alma peregrina?

Chegas de mansinho, como antes. A tua mão pousa-me no ombro:

- Laura, estás a dormir?

Estava, mas nego. Ficamos ali a conversar, fingindo que não nos deciframos. Quero perceber no que não dizes se me vês como me imaginaste quando chegasse esta altura. E tu, o que gostarias que eu visse? O homem que nunca recuperou completamente das agressões que o mundo lhe foi infligindo? Não sei se sabes mas é assim que te vejo - como quando tinhas 20 anos e o olhar de quem se sente acossado. Tentei aplanar-te o caminho para que te ferisses o menos possível mas as cicatrizes que trazes mostram-me que falhei o objectivo. Continuaste a avançar, mesmo quando a mim, com filhos e enteados a cargo, já faltavam as forças para acudir a tantas dúvidas.
Mentalmente, recuo no tempo para indagar como começou este alvoroço. Não creio que tenha sido tomada por súbito estremecimento no instante em que te conheci, mas não demorou muito até que nos amássemos de tantas maneiras que optar por uma só estava fora de questão. Não podias ser meu namorado porque também eras tudo o mais: irmão, filho, confidente, espelho, estranho, colo e desassossego, que é uma maneira de dizer por extenso que eras tudo para mim.
Ante a desmesura desta constatação, tive medo. Guardei a imagem mais perfeita deste amor numa redoma de vidro e parti em busca de uma vida pequenina que, em circunstância alguma, me destroçasse o coração. Casei com um homem sensato, criei filhos bem-comportados, construí um lar confortável. À noite, respondia às tuas cartas e crescia interiormente à custa das tuas dores de homem que, ao contrário de mim, ousara enfrentar-se a si mesmo e, a partir dessa coragem, encarar o mundo. Vislumbrava então, como que iluminada por um brilho assassino, que o tédio é infinitamente mais letal do que o desgosto.
Quando enviuvei já não tinha tempo para mudar de vida, mas, ainda assim, telefonaste-me para dizeres que tinhas saudades minhas. Agora querias matá-las, ao que acedi prontamente, mas na semana que antecedeu o encontro, vivi num reboliço de menina. Alindava a casa para que sentisses vontade de ficar, estudava-me ao espelho para estudar o que ainda poderias desejar. Às vezes, reconhecia o medo da entrega, meu companheiro de toda a vida, mas, agora que estás aqui, sinto que o meu coração também pode estalar de felicidade. Vou oferecer-te o Yeats, que comprei há muitos, muitos anos, na pré-história de mim, quando ainda não te conhecia:


. Tenho um livro para ti. E tu, o que me trazes desta vez?

Abres a mala, tiras um embrulho, sem desviares os olhos dos meus:

- Trago-te a raiz do amaranto. É a flor do amor eterno.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

L'ANAMOUR~SERGE GAINSBOURG

A Caixa (1994) #1

Diogo Dório contracena com Luís Miguel Cintra e Glicínia Quartin

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Lembram-se de A Caixa?



A recordação tem o carácter difuso de um sonho: uma versão de mim com tranças,levada pela mão muito carinhosa de alguém muito mais alto. Vou com o meu avô materno, tenho uma mala de escola amarela com fechos reflectores e ele uma garrafa de vinho para o almoço de um dia com muito sol. Subimos as escadinhas de São Cristóvão, que ligam a Baixa à Mouraria. Lá em cima, o largo, a Igreja, a drogaria do sr. José, cheia das pequenas tentações que apeteciam a uma menina de tranças.
Quase 25 anos depois (em 1994), Manoel de Oliveira pegou no cenário destas memórias e filmou A Caixa. Com Luís Miguel Cintra, Ruy de Carvalho, Glícinia Quartin, Beatriz Batarda, Rogério Samora, Diogo Dória, Miguel Guilherme, Sofia Alves, entre outros. Hoje voltei às Escadinhas. Estão exactamente como as deixei.

domingo, 21 de junho de 2009

Look at me I'm Sandra Dee



Na minha adolescência o Verão era extra-longo e muito pequeno o mundo ao nosso alcance. Na festa dos meus 12 anos, num dia tão sufocante como o de hoje, o meu primo apanhou tosse convulsa depois de ter dançado toda a banda sonora de «Grease» com uma pequena e dengosa ruiva. Como era um duplo álbum, a dança permitia os vários tipos de contágio habituais nessas idades.
Era o disco que animava todas as festas da vizinhança. Olivia Newton-John e John Travolta, transplantados do final da década de 70 (em que estávamos) para os 50's, num musical que reconstituia com mérito o ambiente da América de Elvis e James Dean. Víramos o filme no cinema de bairro e, apesar da trepidação e barulheira dos comboios que passavam mesmo ao lado, parecia-nos que nunca mais seria possível alguém fazer tão perfeita obra prima como aquela em que rapazes cheios de brilhantina cantavam em cima de Cadillac's cintilantes. Verdadeiras e dedicadas fãs, comprávamos cadernos com as fotos do filme, sabíamos de cor as letras das canções, discutíamos se a doce Sandra Dee devia ou não transformar-se na provocante Sandy da apoteose e, obviamente, sonhávamos com um amor assim, com os mesmos olhos azuis de Travolta, revelado em todo o seu esplendor num baile de finalistas.
Com os 37 graus que estão lá fora, ponho a tocar, na semi-obscuridade da sala, o CD com a banda sonora de festas de aniversário de há quase 30 anos. Todos nós mudámos (e ainda bem), distanciámo-nos, em alguns casos irreversivelmente, mas o Verão, esse, continua igual. Lânguido, poderoso e eterno.