terça-feira, 26 de maio de 2009

Manual de civilidade para meninas rabinas

Sim, é verdade que os contraceptivos foram inventados para libertar a mulher do secular terror duma gravidez indesejada. Também ninguém põe em causa que, graças ao esforço das sufragistas de há 100 anos, somos agora seres políticos de pleno direito - elegemos e somos eleitas, tal como os homens da nossa vida. Vamos à Universidade em maior número do que eles, diga-se - em abono da verdade - com nefastas consequências para a alegria de alguns cursos. E, no entanto...

E, no entanto, minhas senhoras... nada de euforias. Diz-me a minha longa experiência de menina rabina que, 30 anos depois da revolução dita dos cravos, as mentalidades, mesmo entre pessoas que votam à esquerda, não distam muito das expressas pela revista Menina e Moça, órgão oficial da Mocidade Portuguesa Feminina. Por isso, caras amigas, se querem singrar, airosamente e em velocidade de cruzeiro na sociedade portuguesa, tomem juízo e sigam estes meus conselhos:

1. Case-se, por amor de Deus! O homem pode ter um sovaquinho incontornável; cortar as unhas em público e não ter qualquer respeito por si, mas é um homem e deve ser tratado como um animal em vias de extinção. Só a presença dele no maple e em alguns jantares assegurará que você não é uma pobre criatura desasasada.
2. Dirija-se aos seus superiores com um fiozinho de voz. Sabia que a Bette Davis é a actriz mais detestada pelos homens? Francamente, do que estava à espera? Que eles apreciassem aquele sorriso desdenhoso e aquela voz segura de si? Por isso, faça de conta que vai entrar numa unidade de cuidados intensivos e implore a sua sábia orientação. Se não o fizer a um ritmo quase diário, arrisca-se a ouvir um ultrajante: «Por que diabo não és tão doce e envolvente como a Belinha ou a Patuxa?»
3. Não aprecie os homens com o mesmo à vontade com que eles falam das nossas mamocas. Mesmo que eles sejam os seus melhores amigos, mesmo que partilhem consigo as bejecas e a taça de amendoins, não gostam de a ouvir comentar os atributos físicos de outros homens. Não se iluda, aquele olhar reprovador significa apenas uma coisa: «Com que então ninfomaníaca?»
4. Não se mostrem demasiado dinâmicas e seguras do caminho que querem seguir. Como escrevia a referia revista Menina e Moça, as mulheres demasiado dinâmicas são «o terror dos que aspiram à tranquilidade». A amiga pensava que 20 anos na escola lhe permitiam ser dona do seu destino? You stupid woman! Você nasceu mulher e, como tal, deverá ser um espírito pacato e facilmente conformável com as circunstâncias. Isto foi escrito em 1941? Sim, mas, já dizia o Salazar, que «os homens mudam pouco, os portugueses quase nada».E - deixem que vos diga - ele sabia do que falava.



Vá, meninas, não sejam preguiçosas. Treinem e cantem comigo: «I'm a Barbie girl/with a barbie face...»

segunda-feira, 25 de maio de 2009

quinta-feira, 21 de maio de 2009

João Bénard da Costa

Amava o cinema mais do que qualquer outra pessoa e, num acto de justiça raro em Portugal, presidia à Cinemateca. Entrevistei-o um par de vezes e via-o frequentemente nas sessões da instituição que dirigia. Numa delas, em que se exibia Do Céu Caiu uma Estrela, entrou, deliberamente, no minuto exacto em que se iniciava a comovente apoteose do filme. E ali ficou, pela enésima vez, maravilhado com o milagre que redime George Bailey. Doravante, espero que seja o anjo Clarence a encarregar-se do Bénard.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

The Sea Hawk (1940) - Montage

Vêm aí os piratas!

Os piratas estão de volta. Não os hackers que se infiltram nos sistemas informáticos mais sofisticados, mas os verdadeiros: os que se ocultam nos recortes da costa para surpreender indefesos navios mercantes. Dos mares da China ou da costa da Somália, chegam, semana após semana, novos relatos de ataques ou de fragatas da marinha postas de atalaia. Devíamos sentir repúdio e, no entanto, o sentimento que nos toma é um fascínio quase infantil. A culpa, está de ver, é do cinema. Ao contrário do que acontece nos westerns, Hollywood (e realizadores como Raoul Walsh ou Michael Curtiz) atribuiu aos piratas uma qualidade de contra-poder, mostrando-os como o ladrão que roubava a ladrão e que se, não obtinha cem anos de perdão, conquistava, pelo menos, a simpatia (e por vezes a identificação) dos espectadores. Esta opção tornou-se muito evidente em filmes como The Spanish Main ou em Captain Blood. No primeiro caso, Van Horn ter-se-á tornado o «terror das Caraíbas» após prolongada sujeição à tortura infligida pelo governador espanhol de Cartagena de las Indias. No segundo, Peter Blood, um médico inglês condenado à escravatura por um crime que não cometeu, torna-se, por desespero, um pirata que trata com humanidade e alguma democracia a turba que comanda.
A propósito deste tema que, confesso, me é caro, recomendo a leitura de Os Piratas - Piratas, Flibusteiros, Bucaneiros e outros Párias do Mar (edição Antígona). Da autoria do ensaísta francês, Gilles Lapouge, é um texto cativante sobre a pirataria, quer do ponto de vista historiográfico, quer ensaístico. Para além de evocar as muitas aventuras de temíveis criaturas como o Capitão Morgan ou Anne Bonnie, esta obra reflecte de forma muito bela sobre este fenómeno: «O pirata é um homem descontente. O espaço que lhe consentem a sociedade ou os deuses parece-lhe exíguo, nauseabundo, desconfortável. Sujeita-se por uns breves anos e depois diz "estou farto" e recusa-se ao jogo». Estranhamente actual? Quantos pacatos cidadãos, de horizontes estreitados pela ganância alheia, são hoje candidatos a este exército de sombras?

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Duas gotas de Chanel nº5

- A tua pátria fica aqui.

No écran, a protagonista feminina pega na mão do parceiro de cena e fá-la deslizar sobre a sua barriga. Como num mapa de pele.

- Entre as minhas pernas.

Luís estava no cinema, diante da história de duas almas perdidas dos seus mundos e lançadas para um barco no estreito do Bósforo. Um homem e uma mulher, um amor como o dos filmes. Tórrido e condenado, por isso mesmo, à precoce imolação. Luís que gosta das tardes de semana passadas no cinema, quando não há pipocas, telemóveis, espectadores enfadados e equivocados a agitarem-se contra a fila da frente: apenas gente que dispõe de um tempo precioso, roubado a um afazer muito mais urgente, para ir ver precisamente aquele filme, naquela sala. Espectadores como a mulher - ele não sabia qual era - que entrara envolta num perfume que lhe era tão sedutor e que, doravante, ele associaria aos amantes do Bósforo. Como se, para além de uma banda sonora, este filme tivesse tido um aroma específico, assinado por qualquer virtuoso da perfumaria.
Seria floral? Ou ambarado? Uma novidade ou um clássico? Do pouco que sabia sobre cosmética feminina, Luís apenas distinguia entre aqueles que iam bem a uma jovem e os que, pelo contrário, ofereceria sem uma hesitação à mãe ou a uma tia. Não era o caso deste, que lhe despertava desejos pouco fraternais, mas, em boa verdade, também não lhe parecia que fosse a escolha de uma teenager.
O filme a decorrer, os amantes a dilacerarem-se numa paisagem belíssima, e ele a tentar perceber a qual das mulheres da sala corresponderia o perfume. A rapariga de argolas grandes nas orelhas, sentada duas filas à sua frente? Demasiado informal; decerto ficava-se pelo uso do sabonete. As duas amigas, mais à esquerda, quase na coxia, demasiado absortas numa conversa em surdina para que o filme lhes chegasse alguma vez a interessar; a mulher de 50 anos, parte de um casal, que passara por ele sem o olhar? O enigma permanecia. Aquele perfume seduzia-o tanto e, na verdade, nenhuma das presentes lhe parecia suficientemente tentadora... De quem? E de que marca? Caro, mas não ostensivo, delicado mas presente, parecia mais próprio da protagonista do que daquelas espectadoras.
Nos dias que se seguiram a esta sessão tão olfactativa como visual, Luís andou pelas perfumarias como numa biblioteca de cheiros: as diversas declinações da Dior, Lancôme, Kenzo, uma oferta muito mais babélica do que suposera possível até que, já grogue de tanta mistura, descobriu a combinação. Et voilá! Chanel nº5! O clássico nunca esgotado nem ultrapassado pelas modas - aquele em que, segundo a lenda, Marilyn Monroe se envolvia antes do seu sono de deusa do amor.
Faltava-lhe agora o mais difícil, senão mesmo o impossível: descobrir a portadora do perfume na tarde de cinema que tanto lhe alvoraçara os sentidos. Voltou várias vezes à mesma sala. Em vão. Sabonetes, desodorizantes, perfumes agradáveis e menos agradáveis, mas inequívocamente outros.
Convencido de que a sua demanda era impossível ou que se prestava a muitos equívocos, Luís recordava-a como um prazer perdido para sempre. Como a música de um Verão de há muito tempo ou o sabor de uma maçã excepcional. Voltou ao cinema numa tarde de semana sem pipocas, telemóveis, espectadores enfadados e equivocados a agitarem-se contra a fila da frente. Pediu o bilhete. Sem uma palavra, a rapariga escolheu o lugar no computador e entregou-lhe a tira de papel. E, nesse momento em que apenas pensava em fumar um cigarro antes da sessão, Luís foi atingido pelo perfume que o obcecava nas últimas semanas: Duas gotas de Chanel nº5.

terça-feira, 12 de maio de 2009

The new CHANEL N°5 film

Há mais cinema nestes 2 minutos do que em tantos filmes de 3 horas.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

O sósia


Salinas, Califórnia, Outubro de 1955

Num bar de beira de estrada, Garfield Spencer tem pouco que fazer, mas muito que contar. Limpa o balcão corrido de fórmica e sonha com os domingos à tarde, em que se permite fechar a loja, para uma matiné no cinema e ser servido, uma vez por semana que seja. Nos outros dias é ele que serve cervejas e hot dogs a quem passa, porque, estabelecido à beira de uma estrada nacional, não tem habitués para além do pó e do calor que sufoca a Califórnia - tão eterno como as neves do Kilimanjaro. Mas a falta de familiaridade que sente quando mais fere a solidão é largamente compensada pela aura de excepção em que, por momentos fugazes, se viu envolvido. Numa tarde impiedosa de um Verão de há muito tempo serviu um chá gelado a John Steinbeck. Permitiu-se cumprimentar o escritor. O sorriso distraído que este lhe devolveu abeirava-se da condescendência, mas foi suficientemente estimulante para que Garfield Spencer, homem de poucas letras, lhe comprasse os livros.
Foi, aliás, quando lia os dois grossos volumes de A Leste do Paraíso (decerto sugestionado pela notícia de que também este romance de Steinbeck viria a ser adaptado ao cinema) que lhe entrou pela porta um jovem louro, vestido e penteado à moda de Marlon Brando. Viera de moto e demonstrava grande ansiedade. Como se lhe faltasse uma parte de si mesmo que jamais encontraria, mesmo que nessa demanda empenhasse todo o esforço. Fumava muito e, de si, disse apenas que a Warner Brothers o tinha chamado para um filme muito importante. Era actor, mas até ali só trabalhara em Nova Iorque, onde Garfield Spencer nunca estivera. Poucas semanas depois, este veria na Moviegoer um retrato desse rapaz impaciente. Chamava-se James Dean e o filme que o trouxera à Califórnia era mesmo importante - tratava-se de A Leste do Paraíso, que Elia Kazan iria realizar segundo o romance do outro cliente excepcional que Garfield servira.
Uma coincidência sincronística, teria concluído se fosse dado a leituras filosóficas, mas, como não era, apenas concluiu, auto-complacente, que a Califórnia se transformara no centro do mundo, para o qual confluíam as personalidades mais fascinantes. A partir do momento histórico em que ocorreu essa descoberta, quem, na desolação da estrada, se detivesse no bar solitário de Garfield Spencer era surpreendido pelo retrato, iluminado a lâmpada fluorescente, da mais jovem estrela de Hollywood. Como num altar feito de gelo.

- É um dos meus melhores clientes. - mentia sem maldade. Garfield Spencer, já na casa dos 30 anos, passou rapidamente do culto à imitação. Nas horas que lhe sobravam, entre os copos que servia a desconhecidos, voltava-se para o espelho e copiava o penteado do ídolo. Muito curto sobre as orelhas, a popa levantada. Passou a acender uns cigarros nos outros e a vestir a t-shirt branca que lhe acentuava a barriguinha que os actores de Hollywood não tinham. Ninguém imaginava Garfield Spencer a declarar, à imagem do ídolo, que o importante era viver depressa, morrer jovem e ter um belo funeral, mas a verdade é que ninguém se dava ao trabalho de imaginar Garfield Spencer.

Na tarde de 30 de Setembro de 1955, não muito longe daquele bar, o actor ficou para sempre igual à imagem do altar. Entregara o gato Marcus aos cuidados de uma amiga e partira para uma corrida de automóveis em Salinas. Ao pôr-do-sol, num cruzamento, o tempo deteve-se, como no momento antes de um duelo de western. James Dean morreu imediatamente, ao volante dum Porsche cintilante. Tinha 24 anos e deixava por estrear dois dos seus únicos três filmes - Fúria de Viver e O Gigante, ainda inacabado. No plateau, Elizabeth Taylor desmaiou e a produção afligiu-se: o que fazer com as cenas que o actor não chegara a filmar?

A poucos quilómetros do cenário da tragédia, refulgia o altar montado por Spencer. Aquele rosto jamais seria sulcado por rugas, o cigarro que lhe pendia dos lábios jamais se apagaria, a expressão trocista adquiriu a inocência que lhe atribuía a comiseração de quem o olhava. "E foi o único a morrer entre todos os que iam nos dois carros", comentava, pesaroso, Garfield aos que, durante uma refeição rápida, pousavam os olhos no altar. Um desses clientes não se deteve, no entanto, em conversas compungidas. Pediu um hamburguer com muita cebola e espiou, sem uma palavra, os gestos do empregado - o modo como defendia a chama do isqueiro, os dedos com que segurava no cigarro, o olhar límpido, a t-shirt negra e justa.
Apesar de ser um homem cândido, Garfield Spencer sentiu que estava a ser observado. Talvez este fosse um cliente de há muito tempo, curioso das mudanças que o tempo lhe trouxera. Ou talvez tivesse vindo porque alguém recomendara. Depois do hamburguer, este cliente habituado a não desviar o olhar, confirmou-lhe parte das suspeitas. Já de pé, voltou a limpar a boca e disparou:

- Tinham razão. Você é o perfeito sósia de James Dean. Uns anos mais velho, mas nada que não se resolva.

Estendeu-lhe o cartão de visita com o logótipo da Warner Brothers. Dias depois, como num passe de magia, Garfield Spencer viu-se num plateau, fisicamente não muito longe de Elizabeth Taylor e Rock Hudson, para terminar, filmado de longe, as cenas que o ídolo não chegara a fazer. Encadeado com o poder dos holofotes, repetiu escrupulosamente quanto lhe foi ordenado pelo realizador George Stevens. Pagaram-lhe o combinado e comprou um carro melhor, mas o seu nome nunca figurou no genérico.

Cenas dos próximos capítulos


Amanhã: um conto com sabor a Cinema. Clássico.

sábado, 2 de maio de 2009

O peso e a graça

Demandou a luz nas mais cerradas trevas, associando o despojamento dos santos à inteligência de um prodígio. Fosse Simone Weil viva e teria feito 100 anos a 3 de Fevereiro. Mas morreu aos 34 anos, durante a Segunda Guerra Mundial, de uma tuberculose agravada pela sua determinação em partilhar a "sorte" dos prisioneiros de guerra na França ocupada pelos alemães. Não foi um acto de desespero, ditado pela militância política ou pela sua condição de judia não praticante; antes o corolário de uma obra e de uma vida conduzidas "apenas" por um ideal de purificação interior.
Na sua existência, breve e fulgurante, Simone deixou alguns dos trabalhos filosóficos mais importantes do século XX como L'Enracinement ou La Pesanteur et la Grace, mas recusou sempre a condição de erudita encerrada em torre de marfim. Foi trabalhadora na Renault porque quis conhecer, no terreno, as condições de vida dos operários, convenceu os pais a dar guarida a Trotsky, alistou-se nas fileiras anarco-sindicalistas na Guerra Civil de Espanha e, finalmente, descobriu Deus e o catolicismo para os viver como tudo o mais: sem cálculo nem sentido de auto-preservação. Até ao limite derradeiro.
Na espuma dos meus dias, feita de mil pequenos egoísmos, releio La Pesanteur et la Grâce (edição Plon, embora haja uma boa tradução portuguesa na Relógio d'Água), em busca de um instante de graça que me liberte de tanto peso inútil. Mas o caminho, mesmo que não conduza ao sublime, está coberto de espinhos. Quem será capaz de renunciar tão obstinadamente ao passado e ao futuro, de substituir a imaginação pela disponibilidade total, de não procurar uma compensação para a infelicidade? Penso em todas as cobardias, vaidades, hedonismos, confortos do corpo e da alma, obrigações reais ou consentidas. As minhas, as tuas, as deles. E depois penso em Roberto Saviano, o jornalista autor de Gomorra, que, aos 29 anos, abdicou dos mais elementares gestos quotidianos porque ousou dizer quem são e onde estão os mafiosos de Nápoles. As palavras de Simone Weil adquirem então uma ressonância diferente. A das coisas que nunca deixam ser novas.

Um livro que seja seu



A Penguin desafia: uma capa em branco. Do it yourself. Esta é a minha sugestão para uma obra que muito amo: As Ondas, de Virginia Woolf.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

O sonho do Cinema


Num destes dias, a pressa à mistura com a obrigação duma apresentação digna levou-me a trocar, momentaneamente, de cabeleireira. Foi aí que conheci uma dessas jovens brasileiras cuja aptidão natural para o atendimento público melhorou consideravelmente a qualidade do comércio lisboeta. Natural do Rio Grande do Sul, contou-me boa parte da vida nos escassos quinze minutos em que se ocupou da minha excelentíssima melena. Não era propriamente uma garota de Ipanema, mas alimentava o sonho de vencer na Europa, graças a enormes doses de simpatia e muitas horas de trabalho. O que nunca seria - anunciava - era uma dessas «marias chuteiras», o que, na grande criatividade vocabular dos brasileiros, significa mulher que corre de futebolista em futebolista até acumular pé-de-meia que a conforte quando escassearem os encantos. Nas suas palavras adivinho uma linhagem de lutadoras, alimentadas, na labuta diária, por sonhos secretos. «Minha mãe amava cinema», disse-me ela, quase no final da função. «Por isso, me deu esse nome». Qual?, pergunto, já a imaginar Gildas&Marlenes. Ela sorriu, subitamente coquette nos seus oitenta kgs: «Audrey!»

A Arte do Encontro

«Eres chilota?». Sentada no lobby de um hotel de Lisboa, uma versão de mim própria aos 20 e poucos anos esperava nervosamente pelo escritor chileno Francisco Coloane, a quem este mesmo jornal mandara entrevistar quando, a convite da Teorema, sua editora portuguesa, veio ao nosso país. Pressentindo talvez essa ansiedade, essa minha certeza de me ficarem curtas as leituras e os anos para entrevistado de tal calibre, quis saber de mim, para quem trabalhava, de que histórias gostava e se o tom moreno da minha pele não viria, afinal, das mesmas latitudes austrais de onde ele vinha: «Seria chilena? Não teria um avô oriundo de tão longínquas terras que justificasse a parecença?» No seu olhar, havia a gentileza e aquela forma particular de curiosidade pelo outro que são o resultado de uma vida longa e intensamente vivida, no caso dele entre a Terra do Fogo e o Estreito de Magalhães, onde foi marinheiro, domador de potros, pesquisador de petróleo e o narrador de excepção que Luís Sepúlveda não hesitou em considerar seu mestre dilecto.
Francisco Coloane morreu em Santiago do Chile, em 2002, aos 83 anos, sem voltar a Portugal e, como tal, sem me dar a oportunidade de lhe fazer entrevista mais fundamentada, mas deu-me a perceber que este meu ofício de entrevistar pessoas tão diferentes entre si não é ofício vulgar, mas sim proporcionador de encontros fugazes, em alguns casos, determinantes para o meu crescimento pessoal. Reencontrei a lição do Coloane quando, acompanhada por Ricardo Araújo Pereira, então estagiário do JL, ouvi Chico Buarque falar sobre as suas paixões futebolísticas; quando, três meses antes de morrer, Al Berto, na esplanada do Príncipe Real, me falava dos muitos projectos que ainda tinha por realizar; quando Fanny Ardant, deslumbrante de elegância, me pedia desculpa por ter de jantar enquanto falava comigo sobre a sua participação no filme Amok, que viera rodar a Portugal. Acrescentarei, para benefício dos jovens jornalistas, que, em quase 20 anos de profissão, os encontros de excepção se contam pelos dedos de uma só mão, mas, como escrevia Keats, «uma coisa bela é uma alegria para sempre». No sábado passado, ao comprar Naufrágios, o livro de Coloane sobre a História Trágico-Marítima dos mares do Sul, não pude deixar de evocar esse momento único que, até agora, guardara só para mim. O ritmo, às vezes desenfreado da agenda, não voltou a fechar-me à possibilidade de uma surpresa. Tornei-me, desde então, uma humilde aprendiz da arte do encontro.