sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A flor do amaranto

Encontraste-me sentada na varanda, a dormitar sobre um livro de poemas de Yeats. Fui buscá-lo à estante quando disseste que vinhas porque, ao longo dos anos, esperei que o teu amor soubesse adaptar-se à crua verdade de estar mudada pelo tempo. Perdi a insolência de quem se move num corpo desejável, ganhei a doçura de quem tem numa sedosa cabeleira branca o derradeiro orgulho. Agora vou ter a prova real: amar-me-ás quando eu for velha e me restar só, como dizia o poeta irlandês sobre a sua amada, a minha alma peregrina?

Chegas de mansinho, como antes. A tua mão pousa-me no ombro:

- Laura, estás a dormir?

Estava, mas nego. Ficamos ali a conversar, fingindo que não nos deciframos. Quero perceber no que não dizes se me vês como me imaginaste quando chegasse esta altura. E tu, o que gostarias que eu visse? O homem que nunca recuperou completamente das agressões que o mundo lhe foi infligindo? Não sei se sabes mas é assim que te vejo - como quando tinhas 20 anos e o olhar de quem se sente acossado. Tentei aplanar-te o caminho para que te ferisses o menos possível mas as cicatrizes que trazes mostram-me que falhei o objectivo. Continuaste a avançar, mesmo quando a mim, com filhos e enteados a cargo, já faltavam as forças para acudir a tantas dúvidas.
Mentalmente, recuo no tempo para indagar como começou este alvoroço. Não creio que tenha sido tomada por súbito estremecimento no instante em que te conheci, mas não demorou muito até que nos amássemos de tantas maneiras que optar por uma só estava fora de questão. Não podias ser meu namorado porque também eras tudo o mais: irmão, filho, confidente, espelho, estranho, colo e desassossego, que é uma maneira de dizer por extenso que eras tudo para mim.
Ante a desmesura desta constatação, tive medo. Guardei a imagem mais perfeita deste amor numa redoma de vidro e parti em busca de uma vida pequenina que, em circunstância alguma, me destroçasse o coração. Casei com um homem sensato, criei filhos bem-comportados, construí um lar confortável. À noite, respondia às tuas cartas e crescia interiormente à custa das tuas dores de homem que, ao contrário de mim, ousara enfrentar-se a si mesmo e, a partir dessa coragem, encarar o mundo. Vislumbrava então, como que iluminada por um brilho assassino, que o tédio é infinitamente mais letal do que o desgosto.
Quando enviuvei já não tinha tempo para mudar de vida, mas, ainda assim, telefonaste-me para dizeres que tinhas saudades minhas. Agora querias matá-las, ao que acedi prontamente, mas na semana que antecedeu o encontro, vivi num reboliço de menina. Alindava a casa para que sentisses vontade de ficar, estudava-me ao espelho para estudar o que ainda poderias desejar. Às vezes, reconhecia o medo da entrega, meu companheiro de toda a vida, mas, agora que estás aqui, sinto que o meu coração também pode estalar de felicidade. Vou oferecer-te o Yeats, que comprei há muitos, muitos anos, na pré-história de mim, quando ainda não te conhecia:


. Tenho um livro para ti. E tu, o que me trazes desta vez?

Abres a mala, tiras um embrulho, sem desviares os olhos dos meus:

- Trago-te a raiz do amaranto. É a flor do amor eterno.