terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Ao teu ouvido






"Fica comigo este dia e esta noite e possuirás/
a alegria de todos os poemas,"


Walt Whitman




Lembras-te de Lost in Translation? O que disse Bill Murray ao ouvido de Scarlett Johansson? Durante anos andei fascinada com este mistério. Que combinação de palavras permitiu a ambos seguir em frente, daquela maneira tocada pela graça? Hoje acho que sei. Talvez se pareça vagamente com o que eu disse ao teu ouvido, na mais definitiva das nossas tardes.
Tive a presciência do nosso encontro três meses antes dele acontecer. Depois de anos de pesadelos, soube que estava livre nas primeiras noites em que voltei a dormir com tranquilidade. Enterrara os meus mortos. Adornara-lhes as sepulturas, em louvor do que tinham representado num tempo distante de mim. Mas houve uma noite em que tomei consciência, clara e inequívoca, dessa transformação ténue, que avançava mansa mas resolutamente. Num sonho bom, com aparência de realidade. Um sonho de liberdade pela primeira vez em tanto tempo, em que era conduzida para o desconhecido por alguém que também não conhecia, sem que, por qualquer razão, isso fosse uma ameaça. Uma viagem em terra incógnita que, depois, na lógica surreal dos sonhos, se transformou em voo, vertigem e, finalmente, em aterragem perfeita.
Quando te vi chegar ao nosso primeiro encontro profissional no velho carocha azul, estremeci de prazer: reconhecera o carro em que voara no sonho. Sorri ante a delicadeza do acaso, mas não o tomei por um prenúncio. Era apenas uma forma do mundo se mostrar capaz de alguma graciosidade.

- Belo carro - comentei quando te aproximaste.

- Acha? Antes era velho, agora é vintage.


Esta ligeireza deu o mote ao encontro, que foi tranquilo, mas, reconheço-o agora, especial. Soltámos amarras e partimos sem destino nem relógio. Já instalados na proximidade do tu, perguntei: "És um poseur?" Respondeste, humilde, quase melancólico, os olhos nos meus olhos: "Achas?" Achar, talvez achasse, mas estava totalmente disponível para estilhaçar velhas certezas. Momentos houve em que suspeitavas, vulnerável, que aquela conversa estava a correr mal, mas eu soube sempre que corria muito bem, porque já nessa altura preferia a fragilidade das pessoas reais a discursos ferreamente controlados.
Poucas vezes me senti tão confortável com um desconhecido. Fisicamente confortável, diga-se. Nem vacilei quando, por instantes, pousaste a mão na minha perna. Habitualmente tão reactiva ao toque, tão guardada na minha concha, deixei-me estar como se a tua mão fosse de água. Foi o primeiro de muitos encontros - almoços, jantares, um rio de palavras e, sim, o flirt é um álcool doce e sumptuoso como uma taça de champanhe. Depois, os sinais de ansiedade traem o enamoramento nascente. Um gesto mais e surge a evidência do desejo. Do que, para nós, mandavam todas as conveniências, não devia acontecer.
Em breve, quase toda a minha felicidade parecia concentrar-se em algumas horas, duas noites na semana, passadas em restaurantes discretos, ruas esquecidas, mensagens codificadas. Antes que a minha felicidade toda estivesse nessa vida furtiva contigo, voltei-lhe as costas com decisão. Falei-te ao ouvido e parti. Nas manhãs que se seguiram, nadava vigorosamente como se dessa forma lavasse a falta física da tua presença. Também deixei de fumar, inscrevi-me numa comunidade de leitores e arranjei um sem número de objectivos subitamente urgentes à espera que o tempo preenchesse aquele vazio. No princípio, tão carnal como a fome.
Agora o breve acorde musical indicando a chegada de um SMS já não me causa o sobressalto risonho dessa época. Porque, com toda a probabilidade, não virá de ti. "A thing of beauty is a joy forever", disse-te ao ouvido, na mais definitiva das nossas tardes, citando Keats para que percebesses que falava muito a sério. Sabes que estarei lá. No conforto que sentes no coração, todas as noites, um minuto antes de adormeceres.

A última literatura

No dia em que, por irreflexão minha, perdi o mais belo dos SMS de amor que alguma vez recebi senti ganas de destruir o telemóvel. Não o fiz (embora tenha aproveitado a intenção para propósito ficcional) mas invejei verdadeiramente esses namoros de outrora que guardavam em maços enlaçados amor, ciúme, esperança, desejo, arrebatamento. Não era Soror Mariana quem queria, mas mesmo o mais singelo apaixonado tinha, nas gavetas, esses pedaços de prosa a que o catalão Joan Margarit chamou a «última literatura». Num poema belíssimo («Non tires las cartas de amor») o poeta escreve: «Caerán los años. Te cansarán los libros./Descenderás aún más/ e, incluso, perderás la poesia./El ruído de ciudad en los cristales/acabará por ser tu única música,/y las cartas de amor que habrás guardado/serán tu última literatura.»
Margarit, nascido em 1938, escrevia para os seus contemporâneos que, na melhor das hipóteses, dispunham de um telefone para encurtar distâncias entre amantes. Os menos imaginativos chegavam mesmo a comprar um dos numerosos manuais de correspondência amorosa disponíveis nas livrarias. Iam ao marco do correio, cheios de esperança de um dia cantarolar como Sérgio Godinho: «E ela disse que sim.»
Mas e-mails e SMS substituíram, com óbvias vantagens prática, a antiga arte da epistolografia. Já não é preciso ir aos correios, gastar dinheiro em papel de carta, selo, horas de angústia na espera da resposta, outras tantas de introspecção para encontrar expressão adequada ao amor que nos tomava. E, no entanto, muito se perdeu nessa substituição tecnológica que poderá significar toda uma transformação civilizacional. Muito dificilmente alguém guardará mails de amor com o empenho posto na conservação de cartas dentro dos respectivos sobrescritos. O que, na ideia de Margarit, deixará as gerações futuras ainda mais sós. Faltar-lhe-ás, nos piores anos, a sua última literatura.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A flor do amaranto

Encontraste-me sentada na varanda, a dormitar sobre um livro de poemas de Yeats. Fui buscá-lo à estante quando disseste que vinhas porque, ao longo dos anos, esperei que o teu amor soubesse adaptar-se à crua verdade de estar mudada pelo tempo. Perdi a insolência de quem se move num corpo desejável, ganhei a doçura de quem tem numa sedosa cabeleira branca o derradeiro orgulho. Agora vou ter a prova real: amar-me-ás quando eu for velha e me restar só, como dizia o poeta irlandês sobre a sua amada, a minha alma peregrina?

Chegas de mansinho, como antes. A tua mão pousa-me no ombro:

- Laura, estás a dormir?

Estava, mas nego. Ficamos ali a conversar, fingindo que não nos deciframos. Quero perceber no que não dizes se me vês como me imaginaste quando chegasse esta altura. E tu, o que gostarias que eu visse? O homem que nunca recuperou completamente das agressões que o mundo lhe foi infligindo? Não sei se sabes mas é assim que te vejo - como quando tinhas 20 anos e o olhar de quem se sente acossado. Tentei aplanar-te o caminho para que te ferisses o menos possível mas as cicatrizes que trazes mostram-me que falhei o objectivo. Continuaste a avançar, mesmo quando a mim, com filhos e enteados a cargo, já faltavam as forças para acudir a tantas dúvidas.
Mentalmente, recuo no tempo para indagar como começou este alvoroço. Não creio que tenha sido tomada por súbito estremecimento no instante em que te conheci, mas não demorou muito até que nos amássemos de tantas maneiras que optar por uma só estava fora de questão. Não podias ser meu namorado porque também eras tudo o mais: irmão, filho, confidente, espelho, estranho, colo e desassossego, que é uma maneira de dizer por extenso que eras tudo para mim.
Ante a desmesura desta constatação, tive medo. Guardei a imagem mais perfeita deste amor numa redoma de vidro e parti em busca de uma vida pequenina que, em circunstância alguma, me destroçasse o coração. Casei com um homem sensato, criei filhos bem-comportados, construí um lar confortável. À noite, respondia às tuas cartas e crescia interiormente à custa das tuas dores de homem que, ao contrário de mim, ousara enfrentar-se a si mesmo e, a partir dessa coragem, encarar o mundo. Vislumbrava então, como que iluminada por um brilho assassino, que o tédio é infinitamente mais letal do que o desgosto.
Quando enviuvei já não tinha tempo para mudar de vida, mas, ainda assim, telefonaste-me para dizeres que tinhas saudades minhas. Agora querias matá-las, ao que acedi prontamente, mas na semana que antecedeu o encontro, vivi num reboliço de menina. Alindava a casa para que sentisses vontade de ficar, estudava-me ao espelho para estudar o que ainda poderias desejar. Às vezes, reconhecia o medo da entrega, meu companheiro de toda a vida, mas, agora que estás aqui, sinto que o meu coração também pode estalar de felicidade. Vou oferecer-te o Yeats, que comprei há muitos, muitos anos, na pré-história de mim, quando ainda não te conhecia:


. Tenho um livro para ti. E tu, o que me trazes desta vez?

Abres a mala, tiras um embrulho, sem desviares os olhos dos meus:

- Trago-te a raiz do amaranto. É a flor do amor eterno.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

L'ANAMOUR~SERGE GAINSBOURG

A Caixa (1994) #1

Diogo Dório contracena com Luís Miguel Cintra e Glicínia Quartin

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Lembram-se de A Caixa?



A recordação tem o carácter difuso de um sonho: uma versão de mim com tranças,levada pela mão muito carinhosa de alguém muito mais alto. Vou com o meu avô materno, tenho uma mala de escola amarela com fechos reflectores e ele uma garrafa de vinho para o almoço de um dia com muito sol. Subimos as escadinhas de São Cristóvão, que ligam a Baixa à Mouraria. Lá em cima, o largo, a Igreja, a drogaria do sr. José, cheia das pequenas tentações que apeteciam a uma menina de tranças.
Quase 25 anos depois (em 1994), Manoel de Oliveira pegou no cenário destas memórias e filmou A Caixa. Com Luís Miguel Cintra, Ruy de Carvalho, Glícinia Quartin, Beatriz Batarda, Rogério Samora, Diogo Dória, Miguel Guilherme, Sofia Alves, entre outros. Hoje voltei às Escadinhas. Estão exactamente como as deixei.

domingo, 21 de junho de 2009

Look at me I'm Sandra Dee



Na minha adolescência o Verão era extra-longo e muito pequeno o mundo ao nosso alcance. Na festa dos meus 12 anos, num dia tão sufocante como o de hoje, o meu primo apanhou tosse convulsa depois de ter dançado toda a banda sonora de «Grease» com uma pequena e dengosa ruiva. Como era um duplo álbum, a dança permitia os vários tipos de contágio habituais nessas idades.
Era o disco que animava todas as festas da vizinhança. Olivia Newton-John e John Travolta, transplantados do final da década de 70 (em que estávamos) para os 50's, num musical que reconstituia com mérito o ambiente da América de Elvis e James Dean. Víramos o filme no cinema de bairro e, apesar da trepidação e barulheira dos comboios que passavam mesmo ao lado, parecia-nos que nunca mais seria possível alguém fazer tão perfeita obra prima como aquela em que rapazes cheios de brilhantina cantavam em cima de Cadillac's cintilantes. Verdadeiras e dedicadas fãs, comprávamos cadernos com as fotos do filme, sabíamos de cor as letras das canções, discutíamos se a doce Sandra Dee devia ou não transformar-se na provocante Sandy da apoteose e, obviamente, sonhávamos com um amor assim, com os mesmos olhos azuis de Travolta, revelado em todo o seu esplendor num baile de finalistas.
Com os 37 graus que estão lá fora, ponho a tocar, na semi-obscuridade da sala, o CD com a banda sonora de festas de aniversário de há quase 30 anos. Todos nós mudámos (e ainda bem), distanciámo-nos, em alguns casos irreversivelmente, mas o Verão, esse, continua igual. Lânguido, poderoso e eterno.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Uma noite com Almodóvar



Madrid, Julho de 2005

Fomos ao Teatro Español ouvir a Martirio. Plateia cheia. Olho para a fila ao lado e vejo Penélope Cruz e Pedro Almodóvar. A menina é jeitosa, mas a sua presença não me suscita qualquer interesse especial. E, no entanto, o realizador de Habla con Ella torna-se um espectáculo dentro do espectáculo. Como num caleidoscópio, «viajo» para o princípio daquele filme e sinto-me Benigno a estudar a emoção de Marco Zaluaga enquanto ambos vêem Pina Bausch. Almodóvar não me desilude. Quando Martirio ataca uma copla mais sofrida, o realizador puxa do lenço e sacode uma lágrima furtiva. Sinto-me reconfortada, no meu inocente voyeurismo. Há coerência entre o homem e a sua obra.

domingo, 14 de junho de 2009

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Furacão






«I have been half in love with easeful Death…Was it a vision or a waking dream?»

Keats, «Ode to a Nightingale»;




Os primeiros sinais do furacão Laura tinham chegado a Key West na noite em que Hamilton se decidira a deixar Sandy. As rajadas de vento atingiam os 195km/hora e as ondas que varriam a costa em breve poderiam ultrapassar os 10 metros, mas nenhuma força, por mais ameaçadora que parecesse, impedia o velho Buick, oriundo do Tennessee, de prosseguir estrada fora. Como se a Hamilton Davis – o seu condutor – perseguisse a ideia de um encontro com o destino. No banco ao lado levava apenas um volume de poemas de Edgar Allan Poe, o mesmo que, desde criança o surpreendia pela desmesura da dor: «E assim estou deitado toda a noite ao lado/Do meu anjo, meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,/ No sepulcro ao pé do mar,/Ao pé do murmúrio do mar», lembrava de cor, como nos tempos em que imaginava a desditosa com o rosto de Gene Tierney.
Ao contrário do poeta que perdera tragicamente a amada, Hamilton regressava ao murmúrio do mar, mas não podia ter saudades. Não tinha de quê. O que mais lhe doía, na partida, era esta perplexidade de se ter dissolvido em espuma tudo o que Sandy lhe dera nos melhores tempos – a admiração profunda, o acompanhamento incondicional, a disponibilidade que ela lhe declarara constante. Sentia-se como alguém que se descobrisse tomado de amores por um fantasma – fora uma aparição ou, tão ansioso estava por um amor assim, que passara todo o tempo a sonhar?



Hamilton e Sandy encontraram-se durante o último furacão. O Mitch («por que diabo falam dos furacões como de heróis de romances?», perguntara-lhe ela quando foram apresentados) nasceu de uma inocente brisa tropical no Mar das Caraíbas. Treze dias depois de ter roubado o panamá de um descuidado veraneante, Mitch destruíra edifícios, pontes, estradas, arrasara zonas costeiras um pouco por toda a América Central e no Sul dos Estados Unidos, mas sobretudo causara cerca de 11 mil vítimas mortais. Treze dias que colocaram Hamilton Davis, professor de Matemática, e Sandra Charles, sem ocupação precisa, que viera às Key em busca da lenda romântica de Hemingway, no limiar do enamoramento.
Fecharam-se num café enquanto toda a cidade seguia, inquieta, a intensidade do vento. «Como num filme antigo», comentou Sandy, ansiosa por demonstrar que existia um cérebro bem treinado sob a franja loura. «Está a falar daquele com o Edward G. Robinson?» – respondeu. «Chama-se Key Largo e passa-se precisamente num local como este – tão decadente que os seus poucos clientes podem morrer por esquecimento do mundo». Lembra-se de pensar em si próprio com sarcasmo («lá está o professor de Matemática a mostrar que sabe umas coisinhas para além da Tabuada»), mas a verdade é que Sandy, afinal pouco mais velha do que as suas alunas do liceu, mordeu o isco e pediu-lhe para falar de Hemingway, que ainda se apaixonara por Key West depois de conhecer quase tudo.
Os tempestuosos dias que se seguiram glosaram este mote. À medida que a tempestade tropical atingia proporções assustadoras, Hamilton Davis, em sobressalto, compreendia que nem sempre se fala de Literatura quando se fala de Literatura, sobretudo se a fúria dos elementos transforma duas pessoas numa ilha. Em breve, Hemingway era apenas o pretexto para que Hamilton e Sandy se tocassem. No último dia do furacão, quando já se sabia que este era fora o mais mortífero da história do Atlântico desde 1780, Hamilton pôs uma velha canção de Sinatra no gira-discos do café e convidou-a para dançar. Meses depois, estava a viver no Tennessee, lado a lado com uma família em tudo diferente da sua, só porque esta era a família de Sandra Charles, a mulher que lhe fora trazida no olho do furacão.

A relação, nascida sob tão romanescos auspícios, não tardou a mostrar-se menos especial do que Hamilton esperara no momento de trocar o liceu da ilha onde crescera por um escritório bancário numa pequena cidade nostálgica do Klu Klux Khan. No dia em que se descobriu a levantar búzios ornamentais para lembrar o som do mar percebeu também que os tempos em que passeavam de mãos dadas, trocando sussurros e beijos, estava longe. Cansada de uma conquista que não tardou a parecer-lhe demasiado fácil, Sandy sugeria-lhe que estivera com outros, fazia comparações, referências consecutivas ao seu passado sexual. E ele ouvia, fingindo brincar e participar no jogo, embora estivesse também muito consciente de que quando amava, só conhecia práticas lúdicas que conduzissem ao êxtase.
Foi, sob o calor sufocante do Verão sulista, que Hamilton compreendeu quão irremediável se tornara a distância que os separava. Como em tantas outras tardes, Sandy e a mãe tinham reunido um grupo de amigas. Como há muito tempo acontecia, também nessa tarde Hamilton, que chegava do banco, não pode impedir-se de as olhar com um misto de desdém e horror. Pareciam-lhe patéticas estas mulheres de várias gerações a presumir de Scarlett O’Hara, como se o Sul ainda fosse um mar de algodão em que damas de crinolina eram devotadamente servidas por criados negros e silenciosos. Jogavam canasta, bebiam laranjadas com muito gelo e falavam sobre homens. Nos últimos anos, a pedido de várias universitárias, concederam que o tabaco fosse acrescentado à mistura, sob a alegação de que era preciso acompanhar a moda, mas tudo o mais continuava tragicamente encalhado num qualquer buraco negro do tempo em que as pessoas se comportavam como num filme de época.
Hamilton pôde constatar, dessa vez, que a sua chegada interrompera uma consulta de Tarot, outra das actividades a que as circunstantes habitualmente se dedicavam. Rebecca Mae, auto-proclamada especialista em artes divinatórias, lançava as cartas para, alegadamente, iluminar o passado, presente e futuro da consulente. Que era, a avaliar pela atrapalhação evidenciada pela interessada e respectiva mãe, a própria Sandy. Se o amor o tivesse cegado completamente, bastaria aquela comunidade de mulheres, assim reunidas e para semelhante efeito, para lhe lembrar que nunca passara dum intruso quer no Tennessee, mas sobretudo – e mais grave ainda – na vida de Sandy. Do andar de cima, onde preparava um banho, Hamilton pôde ouvir distintamente a voz da pitonisa:

- Não estou preocupada com o teu futuro, Sandy. As cartas dizem-me que encontrarás o amor da tua vida (aliás, todas sabemos que já o encontraste, não é querida?)
- Só te enganaste no caminho – interrompeu a mãe da consulente.
- Mas vejo um elemento de perturbação no teu presente. Estás a ver esta carta – a do Diabo? – é a sua presença que te impede de seguir adiante. Sabes o que tens a fazer: enfrentar a realidade com coragem.
- E ruma aos braços do teu Andy, que te ama e sempre amou, independentemente das tuas loucuras – aconselhou uma das conjuradas.

Falavam de Andy Stockwell, o amigo de infância, que a sogra de Hamilton continuava a tratar como a um dos filhos. Apenas um dos muitos nomes na lista com que Sandy gostava de o causticar . O Diabo era ele próprio – o forasteiro que ameaçava a perfeição daquele quadro – mas que este estranho mundo não tardaria a exorcizar. Sentado na beira da banheira, Hamilton sentiu que tudo o enojava naquelas mulheres – a forma afectada como prolongavam as sílabas, a ociosidade, as luvas brancas que impunham aos criados. Um nojo que tomou proporções insuportáveis, quando percebeu que em breve se estenderia a Sandy e ao amor que por ela sentia. A partir de tão tremenda constatação dentro de si mesmo, Hamilton só podia fazer uma de duas coisas: partir ou morrer.


Quando, semanas depois, ouviu na Rádio a notícia de que se aproximava da Costa Sul mais um furacão, cujo impacto se previa comparável ao anterior, dois anos antes, Hamilton não esperou por melhores dias – improvisou uma bagagem muito leve, a que somou os muito manuseados poemas de Edgar Allan Pöe e meteu-se no Buick, disposto a enfrentar a tempestade. Familiarizado, desde criança, com lendas povoadas de piratas espectrais, acreditava piamente na capacidade do mar para apaziguar os dilemas do coração humano. Ao longo da estrada que boletins metereológicos cada vez mais alarmantes iam desertificando, esperava apenas que este furacão levasse Sandy da sua vida da mesma maneira que o anterior o roubara de si mesmo. De volta ao seu mar de galeões afundados, esperaria um amor que lhe merecesse saudades.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Spencer Tracy and Katharine Hepburn-"Woman of the Year"

A menina rabina por excelência e o homem à altura dela.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Manual de civilidade para meninas rabinas

Sim, é verdade que os contraceptivos foram inventados para libertar a mulher do secular terror duma gravidez indesejada. Também ninguém põe em causa que, graças ao esforço das sufragistas de há 100 anos, somos agora seres políticos de pleno direito - elegemos e somos eleitas, tal como os homens da nossa vida. Vamos à Universidade em maior número do que eles, diga-se - em abono da verdade - com nefastas consequências para a alegria de alguns cursos. E, no entanto...

E, no entanto, minhas senhoras... nada de euforias. Diz-me a minha longa experiência de menina rabina que, 30 anos depois da revolução dita dos cravos, as mentalidades, mesmo entre pessoas que votam à esquerda, não distam muito das expressas pela revista Menina e Moça, órgão oficial da Mocidade Portuguesa Feminina. Por isso, caras amigas, se querem singrar, airosamente e em velocidade de cruzeiro na sociedade portuguesa, tomem juízo e sigam estes meus conselhos:

1. Case-se, por amor de Deus! O homem pode ter um sovaquinho incontornável; cortar as unhas em público e não ter qualquer respeito por si, mas é um homem e deve ser tratado como um animal em vias de extinção. Só a presença dele no maple e em alguns jantares assegurará que você não é uma pobre criatura desasasada.
2. Dirija-se aos seus superiores com um fiozinho de voz. Sabia que a Bette Davis é a actriz mais detestada pelos homens? Francamente, do que estava à espera? Que eles apreciassem aquele sorriso desdenhoso e aquela voz segura de si? Por isso, faça de conta que vai entrar numa unidade de cuidados intensivos e implore a sua sábia orientação. Se não o fizer a um ritmo quase diário, arrisca-se a ouvir um ultrajante: «Por que diabo não és tão doce e envolvente como a Belinha ou a Patuxa?»
3. Não aprecie os homens com o mesmo à vontade com que eles falam das nossas mamocas. Mesmo que eles sejam os seus melhores amigos, mesmo que partilhem consigo as bejecas e a taça de amendoins, não gostam de a ouvir comentar os atributos físicos de outros homens. Não se iluda, aquele olhar reprovador significa apenas uma coisa: «Com que então ninfomaníaca?»
4. Não se mostrem demasiado dinâmicas e seguras do caminho que querem seguir. Como escrevia a referia revista Menina e Moça, as mulheres demasiado dinâmicas são «o terror dos que aspiram à tranquilidade». A amiga pensava que 20 anos na escola lhe permitiam ser dona do seu destino? You stupid woman! Você nasceu mulher e, como tal, deverá ser um espírito pacato e facilmente conformável com as circunstâncias. Isto foi escrito em 1941? Sim, mas, já dizia o Salazar, que «os homens mudam pouco, os portugueses quase nada».E - deixem que vos diga - ele sabia do que falava.



Vá, meninas, não sejam preguiçosas. Treinem e cantem comigo: «I'm a Barbie girl/with a barbie face...»

segunda-feira, 25 de maio de 2009

quinta-feira, 21 de maio de 2009

João Bénard da Costa

Amava o cinema mais do que qualquer outra pessoa e, num acto de justiça raro em Portugal, presidia à Cinemateca. Entrevistei-o um par de vezes e via-o frequentemente nas sessões da instituição que dirigia. Numa delas, em que se exibia Do Céu Caiu uma Estrela, entrou, deliberamente, no minuto exacto em que se iniciava a comovente apoteose do filme. E ali ficou, pela enésima vez, maravilhado com o milagre que redime George Bailey. Doravante, espero que seja o anjo Clarence a encarregar-se do Bénard.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

The Sea Hawk (1940) - Montage

Vêm aí os piratas!

Os piratas estão de volta. Não os hackers que se infiltram nos sistemas informáticos mais sofisticados, mas os verdadeiros: os que se ocultam nos recortes da costa para surpreender indefesos navios mercantes. Dos mares da China ou da costa da Somália, chegam, semana após semana, novos relatos de ataques ou de fragatas da marinha postas de atalaia. Devíamos sentir repúdio e, no entanto, o sentimento que nos toma é um fascínio quase infantil. A culpa, está de ver, é do cinema. Ao contrário do que acontece nos westerns, Hollywood (e realizadores como Raoul Walsh ou Michael Curtiz) atribuiu aos piratas uma qualidade de contra-poder, mostrando-os como o ladrão que roubava a ladrão e que se, não obtinha cem anos de perdão, conquistava, pelo menos, a simpatia (e por vezes a identificação) dos espectadores. Esta opção tornou-se muito evidente em filmes como The Spanish Main ou em Captain Blood. No primeiro caso, Van Horn ter-se-á tornado o «terror das Caraíbas» após prolongada sujeição à tortura infligida pelo governador espanhol de Cartagena de las Indias. No segundo, Peter Blood, um médico inglês condenado à escravatura por um crime que não cometeu, torna-se, por desespero, um pirata que trata com humanidade e alguma democracia a turba que comanda.
A propósito deste tema que, confesso, me é caro, recomendo a leitura de Os Piratas - Piratas, Flibusteiros, Bucaneiros e outros Párias do Mar (edição Antígona). Da autoria do ensaísta francês, Gilles Lapouge, é um texto cativante sobre a pirataria, quer do ponto de vista historiográfico, quer ensaístico. Para além de evocar as muitas aventuras de temíveis criaturas como o Capitão Morgan ou Anne Bonnie, esta obra reflecte de forma muito bela sobre este fenómeno: «O pirata é um homem descontente. O espaço que lhe consentem a sociedade ou os deuses parece-lhe exíguo, nauseabundo, desconfortável. Sujeita-se por uns breves anos e depois diz "estou farto" e recusa-se ao jogo». Estranhamente actual? Quantos pacatos cidadãos, de horizontes estreitados pela ganância alheia, são hoje candidatos a este exército de sombras?

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Duas gotas de Chanel nº5

- A tua pátria fica aqui.

No écran, a protagonista feminina pega na mão do parceiro de cena e fá-la deslizar sobre a sua barriga. Como num mapa de pele.

- Entre as minhas pernas.

Luís estava no cinema, diante da história de duas almas perdidas dos seus mundos e lançadas para um barco no estreito do Bósforo. Um homem e uma mulher, um amor como o dos filmes. Tórrido e condenado, por isso mesmo, à precoce imolação. Luís que gosta das tardes de semana passadas no cinema, quando não há pipocas, telemóveis, espectadores enfadados e equivocados a agitarem-se contra a fila da frente: apenas gente que dispõe de um tempo precioso, roubado a um afazer muito mais urgente, para ir ver precisamente aquele filme, naquela sala. Espectadores como a mulher - ele não sabia qual era - que entrara envolta num perfume que lhe era tão sedutor e que, doravante, ele associaria aos amantes do Bósforo. Como se, para além de uma banda sonora, este filme tivesse tido um aroma específico, assinado por qualquer virtuoso da perfumaria.
Seria floral? Ou ambarado? Uma novidade ou um clássico? Do pouco que sabia sobre cosmética feminina, Luís apenas distinguia entre aqueles que iam bem a uma jovem e os que, pelo contrário, ofereceria sem uma hesitação à mãe ou a uma tia. Não era o caso deste, que lhe despertava desejos pouco fraternais, mas, em boa verdade, também não lhe parecia que fosse a escolha de uma teenager.
O filme a decorrer, os amantes a dilacerarem-se numa paisagem belíssima, e ele a tentar perceber a qual das mulheres da sala corresponderia o perfume. A rapariga de argolas grandes nas orelhas, sentada duas filas à sua frente? Demasiado informal; decerto ficava-se pelo uso do sabonete. As duas amigas, mais à esquerda, quase na coxia, demasiado absortas numa conversa em surdina para que o filme lhes chegasse alguma vez a interessar; a mulher de 50 anos, parte de um casal, que passara por ele sem o olhar? O enigma permanecia. Aquele perfume seduzia-o tanto e, na verdade, nenhuma das presentes lhe parecia suficientemente tentadora... De quem? E de que marca? Caro, mas não ostensivo, delicado mas presente, parecia mais próprio da protagonista do que daquelas espectadoras.
Nos dias que se seguiram a esta sessão tão olfactativa como visual, Luís andou pelas perfumarias como numa biblioteca de cheiros: as diversas declinações da Dior, Lancôme, Kenzo, uma oferta muito mais babélica do que suposera possível até que, já grogue de tanta mistura, descobriu a combinação. Et voilá! Chanel nº5! O clássico nunca esgotado nem ultrapassado pelas modas - aquele em que, segundo a lenda, Marilyn Monroe se envolvia antes do seu sono de deusa do amor.
Faltava-lhe agora o mais difícil, senão mesmo o impossível: descobrir a portadora do perfume na tarde de cinema que tanto lhe alvoraçara os sentidos. Voltou várias vezes à mesma sala. Em vão. Sabonetes, desodorizantes, perfumes agradáveis e menos agradáveis, mas inequívocamente outros.
Convencido de que a sua demanda era impossível ou que se prestava a muitos equívocos, Luís recordava-a como um prazer perdido para sempre. Como a música de um Verão de há muito tempo ou o sabor de uma maçã excepcional. Voltou ao cinema numa tarde de semana sem pipocas, telemóveis, espectadores enfadados e equivocados a agitarem-se contra a fila da frente. Pediu o bilhete. Sem uma palavra, a rapariga escolheu o lugar no computador e entregou-lhe a tira de papel. E, nesse momento em que apenas pensava em fumar um cigarro antes da sessão, Luís foi atingido pelo perfume que o obcecava nas últimas semanas: Duas gotas de Chanel nº5.

terça-feira, 12 de maio de 2009

The new CHANEL N°5 film

Há mais cinema nestes 2 minutos do que em tantos filmes de 3 horas.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

O sósia


Salinas, Califórnia, Outubro de 1955

Num bar de beira de estrada, Garfield Spencer tem pouco que fazer, mas muito que contar. Limpa o balcão corrido de fórmica e sonha com os domingos à tarde, em que se permite fechar a loja, para uma matiné no cinema e ser servido, uma vez por semana que seja. Nos outros dias é ele que serve cervejas e hot dogs a quem passa, porque, estabelecido à beira de uma estrada nacional, não tem habitués para além do pó e do calor que sufoca a Califórnia - tão eterno como as neves do Kilimanjaro. Mas a falta de familiaridade que sente quando mais fere a solidão é largamente compensada pela aura de excepção em que, por momentos fugazes, se viu envolvido. Numa tarde impiedosa de um Verão de há muito tempo serviu um chá gelado a John Steinbeck. Permitiu-se cumprimentar o escritor. O sorriso distraído que este lhe devolveu abeirava-se da condescendência, mas foi suficientemente estimulante para que Garfield Spencer, homem de poucas letras, lhe comprasse os livros.
Foi, aliás, quando lia os dois grossos volumes de A Leste do Paraíso (decerto sugestionado pela notícia de que também este romance de Steinbeck viria a ser adaptado ao cinema) que lhe entrou pela porta um jovem louro, vestido e penteado à moda de Marlon Brando. Viera de moto e demonstrava grande ansiedade. Como se lhe faltasse uma parte de si mesmo que jamais encontraria, mesmo que nessa demanda empenhasse todo o esforço. Fumava muito e, de si, disse apenas que a Warner Brothers o tinha chamado para um filme muito importante. Era actor, mas até ali só trabalhara em Nova Iorque, onde Garfield Spencer nunca estivera. Poucas semanas depois, este veria na Moviegoer um retrato desse rapaz impaciente. Chamava-se James Dean e o filme que o trouxera à Califórnia era mesmo importante - tratava-se de A Leste do Paraíso, que Elia Kazan iria realizar segundo o romance do outro cliente excepcional que Garfield servira.
Uma coincidência sincronística, teria concluído se fosse dado a leituras filosóficas, mas, como não era, apenas concluiu, auto-complacente, que a Califórnia se transformara no centro do mundo, para o qual confluíam as personalidades mais fascinantes. A partir do momento histórico em que ocorreu essa descoberta, quem, na desolação da estrada, se detivesse no bar solitário de Garfield Spencer era surpreendido pelo retrato, iluminado a lâmpada fluorescente, da mais jovem estrela de Hollywood. Como num altar feito de gelo.

- É um dos meus melhores clientes. - mentia sem maldade. Garfield Spencer, já na casa dos 30 anos, passou rapidamente do culto à imitação. Nas horas que lhe sobravam, entre os copos que servia a desconhecidos, voltava-se para o espelho e copiava o penteado do ídolo. Muito curto sobre as orelhas, a popa levantada. Passou a acender uns cigarros nos outros e a vestir a t-shirt branca que lhe acentuava a barriguinha que os actores de Hollywood não tinham. Ninguém imaginava Garfield Spencer a declarar, à imagem do ídolo, que o importante era viver depressa, morrer jovem e ter um belo funeral, mas a verdade é que ninguém se dava ao trabalho de imaginar Garfield Spencer.

Na tarde de 30 de Setembro de 1955, não muito longe daquele bar, o actor ficou para sempre igual à imagem do altar. Entregara o gato Marcus aos cuidados de uma amiga e partira para uma corrida de automóveis em Salinas. Ao pôr-do-sol, num cruzamento, o tempo deteve-se, como no momento antes de um duelo de western. James Dean morreu imediatamente, ao volante dum Porsche cintilante. Tinha 24 anos e deixava por estrear dois dos seus únicos três filmes - Fúria de Viver e O Gigante, ainda inacabado. No plateau, Elizabeth Taylor desmaiou e a produção afligiu-se: o que fazer com as cenas que o actor não chegara a filmar?

A poucos quilómetros do cenário da tragédia, refulgia o altar montado por Spencer. Aquele rosto jamais seria sulcado por rugas, o cigarro que lhe pendia dos lábios jamais se apagaria, a expressão trocista adquiriu a inocência que lhe atribuía a comiseração de quem o olhava. "E foi o único a morrer entre todos os que iam nos dois carros", comentava, pesaroso, Garfield aos que, durante uma refeição rápida, pousavam os olhos no altar. Um desses clientes não se deteve, no entanto, em conversas compungidas. Pediu um hamburguer com muita cebola e espiou, sem uma palavra, os gestos do empregado - o modo como defendia a chama do isqueiro, os dedos com que segurava no cigarro, o olhar límpido, a t-shirt negra e justa.
Apesar de ser um homem cândido, Garfield Spencer sentiu que estava a ser observado. Talvez este fosse um cliente de há muito tempo, curioso das mudanças que o tempo lhe trouxera. Ou talvez tivesse vindo porque alguém recomendara. Depois do hamburguer, este cliente habituado a não desviar o olhar, confirmou-lhe parte das suspeitas. Já de pé, voltou a limpar a boca e disparou:

- Tinham razão. Você é o perfeito sósia de James Dean. Uns anos mais velho, mas nada que não se resolva.

Estendeu-lhe o cartão de visita com o logótipo da Warner Brothers. Dias depois, como num passe de magia, Garfield Spencer viu-se num plateau, fisicamente não muito longe de Elizabeth Taylor e Rock Hudson, para terminar, filmado de longe, as cenas que o ídolo não chegara a fazer. Encadeado com o poder dos holofotes, repetiu escrupulosamente quanto lhe foi ordenado pelo realizador George Stevens. Pagaram-lhe o combinado e comprou um carro melhor, mas o seu nome nunca figurou no genérico.

Cenas dos próximos capítulos


Amanhã: um conto com sabor a Cinema. Clássico.

sábado, 2 de maio de 2009

O peso e a graça

Demandou a luz nas mais cerradas trevas, associando o despojamento dos santos à inteligência de um prodígio. Fosse Simone Weil viva e teria feito 100 anos a 3 de Fevereiro. Mas morreu aos 34 anos, durante a Segunda Guerra Mundial, de uma tuberculose agravada pela sua determinação em partilhar a "sorte" dos prisioneiros de guerra na França ocupada pelos alemães. Não foi um acto de desespero, ditado pela militância política ou pela sua condição de judia não praticante; antes o corolário de uma obra e de uma vida conduzidas "apenas" por um ideal de purificação interior.
Na sua existência, breve e fulgurante, Simone deixou alguns dos trabalhos filosóficos mais importantes do século XX como L'Enracinement ou La Pesanteur et la Grace, mas recusou sempre a condição de erudita encerrada em torre de marfim. Foi trabalhadora na Renault porque quis conhecer, no terreno, as condições de vida dos operários, convenceu os pais a dar guarida a Trotsky, alistou-se nas fileiras anarco-sindicalistas na Guerra Civil de Espanha e, finalmente, descobriu Deus e o catolicismo para os viver como tudo o mais: sem cálculo nem sentido de auto-preservação. Até ao limite derradeiro.
Na espuma dos meus dias, feita de mil pequenos egoísmos, releio La Pesanteur et la Grâce (edição Plon, embora haja uma boa tradução portuguesa na Relógio d'Água), em busca de um instante de graça que me liberte de tanto peso inútil. Mas o caminho, mesmo que não conduza ao sublime, está coberto de espinhos. Quem será capaz de renunciar tão obstinadamente ao passado e ao futuro, de substituir a imaginação pela disponibilidade total, de não procurar uma compensação para a infelicidade? Penso em todas as cobardias, vaidades, hedonismos, confortos do corpo e da alma, obrigações reais ou consentidas. As minhas, as tuas, as deles. E depois penso em Roberto Saviano, o jornalista autor de Gomorra, que, aos 29 anos, abdicou dos mais elementares gestos quotidianos porque ousou dizer quem são e onde estão os mafiosos de Nápoles. As palavras de Simone Weil adquirem então uma ressonância diferente. A das coisas que nunca deixam ser novas.

Um livro que seja seu



A Penguin desafia: uma capa em branco. Do it yourself. Esta é a minha sugestão para uma obra que muito amo: As Ondas, de Virginia Woolf.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

O sonho do Cinema


Num destes dias, a pressa à mistura com a obrigação duma apresentação digna levou-me a trocar, momentaneamente, de cabeleireira. Foi aí que conheci uma dessas jovens brasileiras cuja aptidão natural para o atendimento público melhorou consideravelmente a qualidade do comércio lisboeta. Natural do Rio Grande do Sul, contou-me boa parte da vida nos escassos quinze minutos em que se ocupou da minha excelentíssima melena. Não era propriamente uma garota de Ipanema, mas alimentava o sonho de vencer na Europa, graças a enormes doses de simpatia e muitas horas de trabalho. O que nunca seria - anunciava - era uma dessas «marias chuteiras», o que, na grande criatividade vocabular dos brasileiros, significa mulher que corre de futebolista em futebolista até acumular pé-de-meia que a conforte quando escassearem os encantos. Nas suas palavras adivinho uma linhagem de lutadoras, alimentadas, na labuta diária, por sonhos secretos. «Minha mãe amava cinema», disse-me ela, quase no final da função. «Por isso, me deu esse nome». Qual?, pergunto, já a imaginar Gildas&Marlenes. Ela sorriu, subitamente coquette nos seus oitenta kgs: «Audrey!»

A Arte do Encontro

«Eres chilota?». Sentada no lobby de um hotel de Lisboa, uma versão de mim própria aos 20 e poucos anos esperava nervosamente pelo escritor chileno Francisco Coloane, a quem este mesmo jornal mandara entrevistar quando, a convite da Teorema, sua editora portuguesa, veio ao nosso país. Pressentindo talvez essa ansiedade, essa minha certeza de me ficarem curtas as leituras e os anos para entrevistado de tal calibre, quis saber de mim, para quem trabalhava, de que histórias gostava e se o tom moreno da minha pele não viria, afinal, das mesmas latitudes austrais de onde ele vinha: «Seria chilena? Não teria um avô oriundo de tão longínquas terras que justificasse a parecença?» No seu olhar, havia a gentileza e aquela forma particular de curiosidade pelo outro que são o resultado de uma vida longa e intensamente vivida, no caso dele entre a Terra do Fogo e o Estreito de Magalhães, onde foi marinheiro, domador de potros, pesquisador de petróleo e o narrador de excepção que Luís Sepúlveda não hesitou em considerar seu mestre dilecto.
Francisco Coloane morreu em Santiago do Chile, em 2002, aos 83 anos, sem voltar a Portugal e, como tal, sem me dar a oportunidade de lhe fazer entrevista mais fundamentada, mas deu-me a perceber que este meu ofício de entrevistar pessoas tão diferentes entre si não é ofício vulgar, mas sim proporcionador de encontros fugazes, em alguns casos, determinantes para o meu crescimento pessoal. Reencontrei a lição do Coloane quando, acompanhada por Ricardo Araújo Pereira, então estagiário do JL, ouvi Chico Buarque falar sobre as suas paixões futebolísticas; quando, três meses antes de morrer, Al Berto, na esplanada do Príncipe Real, me falava dos muitos projectos que ainda tinha por realizar; quando Fanny Ardant, deslumbrante de elegância, me pedia desculpa por ter de jantar enquanto falava comigo sobre a sua participação no filme Amok, que viera rodar a Portugal. Acrescentarei, para benefício dos jovens jornalistas, que, em quase 20 anos de profissão, os encontros de excepção se contam pelos dedos de uma só mão, mas, como escrevia Keats, «uma coisa bela é uma alegria para sempre». No sábado passado, ao comprar Naufrágios, o livro de Coloane sobre a História Trágico-Marítima dos mares do Sul, não pude deixar de evocar esse momento único que, até agora, guardara só para mim. O ritmo, às vezes desenfreado da agenda, não voltou a fechar-me à possibilidade de uma surpresa. Tornei-me, desde então, uma humilde aprendiz da arte do encontro.