- A tua pátria fica aqui.
No écran, a protagonista feminina pega na mão do parceiro de cena e fá-la deslizar sobre a sua barriga. Como num mapa de pele.
- Entre as minhas pernas.
Luís estava no cinema, diante da história de duas almas perdidas dos seus mundos e lançadas para um barco no estreito do Bósforo. Um homem e uma mulher, um amor como o dos filmes. Tórrido e condenado, por isso mesmo, à precoce imolação. Luís que gosta das tardes de semana passadas no cinema, quando não há pipocas, telemóveis, espectadores enfadados e equivocados a agitarem-se contra a fila da frente: apenas gente que dispõe de um tempo precioso, roubado a um afazer muito mais urgente, para ir ver precisamente aquele filme, naquela sala. Espectadores como a mulher - ele não sabia qual era - que entrara envolta num perfume que lhe era tão sedutor e que, doravante, ele associaria aos amantes do Bósforo. Como se, para além de uma banda sonora, este filme tivesse tido um aroma específico, assinado por qualquer virtuoso da perfumaria.
Seria floral? Ou ambarado? Uma novidade ou um clássico? Do pouco que sabia sobre cosmética feminina, Luís apenas distinguia entre aqueles que iam bem a uma jovem e os que, pelo contrário, ofereceria sem uma hesitação à mãe ou a uma tia. Não era o caso deste, que lhe despertava desejos pouco fraternais, mas, em boa verdade, também não lhe parecia que fosse a escolha de uma teenager.
O filme a decorrer, os amantes a dilacerarem-se numa paisagem belíssima, e ele a tentar perceber a qual das mulheres da sala corresponderia o perfume. A rapariga de argolas grandes nas orelhas, sentada duas filas à sua frente? Demasiado informal; decerto ficava-se pelo uso do sabonete. As duas amigas, mais à esquerda, quase na coxia, demasiado absortas numa conversa em surdina para que o filme lhes chegasse alguma vez a interessar; a mulher de 50 anos, parte de um casal, que passara por ele sem o olhar? O enigma permanecia. Aquele perfume seduzia-o tanto e, na verdade, nenhuma das presentes lhe parecia suficientemente tentadora... De quem? E de que marca? Caro, mas não ostensivo, delicado mas presente, parecia mais próprio da protagonista do que daquelas espectadoras.
Nos dias que se seguiram a esta sessão tão olfactativa como visual, Luís andou pelas perfumarias como numa biblioteca de cheiros: as diversas declinações da Dior, Lancôme, Kenzo, uma oferta muito mais babélica do que suposera possível até que, já grogue de tanta mistura, descobriu a combinação. Et voilá! Chanel nº5! O clássico nunca esgotado nem ultrapassado pelas modas - aquele em que, segundo a lenda, Marilyn Monroe se envolvia antes do seu sono de deusa do amor.
Faltava-lhe agora o mais difícil, senão mesmo o impossível: descobrir a portadora do perfume na tarde de cinema que tanto lhe alvoraçara os sentidos. Voltou várias vezes à mesma sala. Em vão. Sabonetes, desodorizantes, perfumes agradáveis e menos agradáveis, mas inequívocamente outros.
Convencido de que a sua demanda era impossível ou que se prestava a muitos equívocos, Luís recordava-a como um prazer perdido para sempre. Como a música de um Verão de há muito tempo ou o sabor de uma maçã excepcional. Voltou ao cinema numa tarde de semana sem pipocas, telemóveis, espectadores enfadados e equivocados a agitarem-se contra a fila da frente. Pediu o bilhete. Sem uma palavra, a rapariga escolheu o lugar no computador e entregou-lhe a tira de papel. E, nesse momento em que apenas pensava em fumar um cigarro antes da sessão, Luís foi atingido pelo perfume que o obcecava nas últimas semanas: Duas gotas de Chanel nº5.
quinta-feira, 14 de maio de 2009
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